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amarelo
Nível de Risco
Existência de indícios de possíveis problemas que possam afetar significativamente o sector petrolífero.A probabilidade de se tornar uma ameaça real é baixa, mas deverá existir uma monitorização contínua da situação.

Causes:
Devido aos problemas de fornecimento elétrico, a ENSE encontra-se a monitorizar os impactos no Setor Petrolífero Nacional.

Desafios Energéticos numa Ótica Local

25/03/2022

As comunidades locais e seus representantes são agentes essenciais na promoção da transição energética

 

Revisitada a história dos últimos 250 anos, confirmamos a existência de padrões que sustentam as grandes mudanças económicas e sociais, e esses padrões estão, invariavelmente, relacionados com fontes de energia. As três grandes revoluções industriais [1] que transformaram o mundo transportaram, em si mesmas, por um lado, modificações e diversificações da matriz energética, e por outro, o surgimento de novas fontes de energia, que têm sido a marca de cada uma das revoluções. Podemos, pois, aqui deixar assente no âmbito deste nosso estudo, que a cada um dos períodos industriais, que muito sumariamente caracterizámos, vem associado a um determinado modelo energético, que também define cada um dos períodos.

Tendo em conta os dados do último relatório “World Energy Outlook 2021” [2], prevê-se que a “a procura de petróleo comece a diminuir na década de 2030”. A identificada publicação refere que “a procura por petróleo apresenta, pela primeira vez, um eventual declínio em todos os cenários deste Outlook […] No cenário das políticas atuais (Stated Policies Scenario), a procura estabiliza nos 104 milhões de barris/dia em meados da década de 2030 e, diminui muito ligeiramente na década de 2050.

Esta estabilização e declínio do consumo de petróleo como fonte primária é o principal indício de uma nova matriz energética, não já sustentada na utilização do petróleo, mas antes sim no recurso massivo a energias renováveis, o que implica uma alteração ao modelo energético. Esta alteração de modelo é uma dificuldade de âmbito global, dada a dependência do petróleo em todos os setores da economia. E dizemos que é uma dificuldade global porque as principais potências industriais do mundo não poupam investimentos para promover esta nova transição energética, no sentido de alcançar a independência dos combustíveis fósseis, sendo já assumido por todos que o setor da energia vai mudar gradualmente para as energias renováveis, e o período de transição será fortemente determinado pelos investimentos realizados nessas fontes de energia, tanto de capital público, quanto privado, o que vai condicionar, de novo, os países mais pobres, mantendo clivagem entre países ricos vs países pobres. De uma perspetiva puramente geopolítica, e perante a forte dependência das importações de petróleo e de gás natural, nada mais resta à UE que apostar na transição energética.

Esta (necessária) transição energética vem associada ao fenómeno das alterações climáticas, muito (mas não só) por efeito do uso excessivo de carburantes derivados do petróleo, e mesmo sabendo que este conceito de “alterações climáticas” é, a diário, citado nos mais diversos meios de comunicação social e em fóruns da especialidade, com escrutínio diário com base em estudos científicos, entendemos por bem deixar a nossa (tentativa) de definição, até para dar corpo à nossa visão dos desafios enérgicos que temos pela frente, com especial foco nas responsabilidades locais. As alterações climáticas são as modificações do clima em relação à história do clima para uma escala global ou regional. O termo, atualmente, é sinónimo de aquecimento global do planeta Terra por ação da atividade humana, muito por efeito da utilização do petróleo e seus derivados como fonte energética.

Abordado muito sumariamente o tema do modelo energético (em fase de transição, como vimos) e o facto de a UE apostar na transição energética, quer seja por imposição e estratégica geopolítica, na medida em que a Europa importa praticamente todo o petróleo consumido, quer pela urgência de fazer face às alterações climáticas, centramos a nossa atenção na resposta de Portugal a este tema, e que, necessariamente acompanha as linhas estabelecidas pelas Instâncias Comunitárias, política esta vertida no PNEC – plano nacional de energia e clima, que no essencial estabelece os objetivos da política climática e energética nacional para o horizonte de 2030, com uma meta de redução de -45% a -55% de emissões de gases de efeitos de estufa, 35% de eficiência energética, 47% de energia proveniente de fontes renováveis e sua utilização em 20% nos transportes, e ainda 15% de interligações elétricas em todo o território nacional, assinalando a aposta do país na descarbonização do setor energético, com vista à neutralidade carbónica em 2050. Por outro lado, e olhando agora para o PREP – Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030, este documento apresenta, no que à transição energética diz respeito (mas não só) as principais linhas de força nacionais para uma utilização mais inteligente e eficiente da energia, com a principal tónica na redução do consumo de combustíveis fósseis, através da substituição progressiva desta fonte de energia, por recursos endógenos, como sejam as energias renováveis, em linha, aliás, com os dois pontos que já foram focados mais acima, a independência dos combustíveis fósseis, e por essa razão, a soberania energética de Portugal. Este último conceito, de soberania energética, é um conceito ainda pouco explorado, e muitas vezes conotado negativamente como forma de combater as principais empresas energéticas, contudo, para esta nossa apresentação, podemos assumir o conceito de “soberania energética” como o direito das comunidades assumirem as próprias decisões no que diz respeito à geração, distribuição e consumo de energia, respeitando o meio ambiente e optando por tecnologias que não afetem negativamente terceiros, conceito que liga bem com o recente impulso legislativo dado à criação de comunidades energéticas, conforme vai ser abordado mais adiante. Por outro lado, se bem que este conceito seja aplicado ao país no seu todo, como também vamos ver, a verdade é que é nas comunidades locais que melhor assenta, partindo do pressuposto que são estas que melhor se posicionam para defender os interesses da própria comunidade local, e que melhor conhecem as particularidades locais.

Focados agora no tema que nos ocupa, e dando corpo à frase que marca o início deste texto, diremos que o contributo dos municípios das autoridades locais para esta nova realidade energética é tema praticamente esquecido e residual, o que não deixa de ser uma contradição, tendo em conta a natureza modular e intrinsecamente local das energias renováveis, que em bom rigor não deixam de representar uma oportunidade para desenvolver, de forma coletiva, uma cultura energética enraizada no território. Com efeito, mesmo não conhecendo todos planos e projetos desenvolvidos localmente, e já são alguns, como vamos ter oportunidade de verificar, a verdade é que retirando a criação de uma taxa de implantação de instalação de equipamento fotovoltaico por parte de um município nacional, e protocolos de instalação de pontos de carregamento para veículos locomovidos a eletricidade, não identificamos verdadeiras iniciativas locais que, de alguma forma, alterem o paradigma centralizador desta revolução energética.

Isto porque a tão apregoada transição energética é uma realidade que vivemos hoje e que nos vai permitir alcançar um mundo mais sustentável amanhã, sob a premissa que todos nós contribuímos para este objetivo comum, e em especial as comunidades locais, que são uma peça chave na luta contra as alterações climáticas, pois são as comunidades locais que estão em melhores condições para canalizar as demandas do cidadãos, promover políticas públicas e desenvolver orçamentos de acordo com o seu compromisso com a sustentabilidade e eficiência energética, recorrendo para o efeito a energias renováveis produzidas localmente. Cabe às comunidades locais liderar e ser o motor da transição energética, numa lógica de descentralização do modelo energético em clara transmutação pelas razões que já abordámos mais acima, pois são as comunidades locais que estão melhor posicionadas para colocar o consumidor no centro do sistema, criando oportunidades de desenvolvimento e autossuficiência energética. E as próprias instituições comunitárias estão cientes da importância do poder local em toda esta transição, razão pela qual têm colocado à disposição das comunidades locais um conjunto de ferramentas que pretende ajudar os municípios europeus a alavancar a concretização de investimentos para a transição energética, como seja o EUCF – European City Facility [3], que mais não é que uma forma de, conjuntamente, partilhar sinergias e conhecimentos, com o objetivo declarado de alcançar e facilitar a produção local de energias renováveis, através de um financiamento do programa “Horizonte 2020”, com um claro objetivo de promover a realização de auditorias energéticas, estudo de viabilidade ou em análises de mercado no setor da energia. Tendo em conta que o fornecimento de energia é essencial para o desenvolvimento da nossa indústria, é evidente a necessidade de empreender uma transição energética que implique a transformação do atual modelo energético num novo modelo distributivo baseado em energias renováveis, com infraestruturas menores e mais próximas para o consumidor. Por essas razões, a esfera local, e principalmente os parques industriais, tornam-se os espaços ideais para promover essa transição.

Nos últimos tempos temos assistido à alteração do paradigma da gestão privada dos recursos locais, pois que a gestão pública está a ser reavaliada como uma alternativa à gestão privada, isto porque em muitas situações, mais que as desejáveis, esta última não demonstrou as virtudes de qualidade e eficiência a que estava obrigada. Além disso, é já assumido que a gestão pública direta (nomeadamente a local) torna mais fácil incluir mais variáveis do que as puramente económicas na gestão dos recursos, como sejam as variáveis sociais ou ambientais, sendo que é a combinação destes dois aspetos que está na base da mudança de paradigma na conceção de serviços públicos, e que está na base de uma onda de (re)municipalização da gestão dos recursos locais, movimento bem patente por toda a Europa nos últimos tempos, e bem assim, como não podia deixar de ser, em Portugal. Falamos em serviços relacionados com a gestão de serviços como água, transportes ou gestão de resíduos. No caso da energia, o objetivo de aumentar a soberania energética local (já invocada e explicitada mais acima, recorde-se) deve ser combinado com a promoção da participação do cidadão na gestão e na propriedade das infraestruturas. Este objetivo permite a transformação das relações de poder tradicionais no setor da energia e a geração de novos modelos que também permitem lidar com questões sociais como a pobreza energética [4], apostando, segundo a nossa forma de ver, na evolução, nos próximos tempos, para um fenómeno de municipalismo energético que contribua ativamente para essa transição do estadual para o local, operando, desta forma, uma aproximação ao consumidor. E veja-se que esta transição nem sequer coloca em causa a propriedade das redes de distribuição, que em Portugal estão nas mãos de monopólios naturais pertencentes a grandes empresas de eletricidade, bastando para o efeito que as comunidades locais procedam à criação de agências locais de energia, promovendo a informação ao cidadão/munícipe, pois que, o que neste momento dificulta a intervenção das comunidades locais é a (aparente) complexidade das barreiras políticas e económicas para promover a transição energética a partir do nível local, cabendo aos responsáveis locais encontrar soluções que, em bom rigor, facilitem a compreensão e intervenção dos interessados [5]. E ficou dito mais acima que esta nova intervenção local na necessária transição energética não coloca em causa os contratos de concessão – em vigor no setor elétrico -, porque o próprio legislador criou um mecanismo legal que permite às comunidades locais alterarem, por completo, a tendência centralizadora da produção e distribuição de energia. Falamos, obviamente, da figura do autoconsumo de energia renovável, e a possibilidade de os municípios constituírem ou integrarem uma “comunidade de energia renovável” [6] (CER), o que possibilita produzir, consumir, armazenar, partilhar e vender eletricidade sem serem confrontados com encargos desproporcionados, constituindo esta medida uma oportunidade de mudança no modelo energético, sendo o autoconsumo fotovoltaico um dos pilares fundamentais desta mudança, pois abre as portas para que o cidadão, e em grande medida as comunidades locais, se tornem agentes ativos do setor energético, podendo gerar, consumir, comercializar, armazenar e gerir sua própria energia.

As ferramentas e estratégias apresentadas para este esforço comum, e em particular um esforço das comunidades locais, no sentido em que aqui vem abordado, são exemplos de iniciativas europeias que permitiram às administrações locais enfrentarem barreiras políticas e económicas para promover a transição energética a partir do nível local. O horizonte de soberania energética pode contribuir para dinamizar a economia local e diversificar as fontes de receita dos municípios e (re)construir novos laços entre os cidadãos e promover a sua participação na esfera pública. Desta forma, há todo um conjunto de propostas para desenvolver a questão energética pelas autoridades locais, mesmo com os seus inevitáveis conflitos e paradoxos, e sempre em busca de sinergias com aquelas entidades que já atuam nessa linha. A urgência de reagir aos desafios deste século é um apelo para integrar a questão energética como eixo central das propostas políticas de âmbito local; sendo que é nossa convicção que as câmaras municipais, pela sua escala e proximidade com o bairro e com o seu dia-a-dia, são um ator e instrumento essencial para a transição energética renovável, sustentável, descentralizada e democrática, podendo, adicionalmente, impulsionar a economia local e diversificar as fontes de receita dos municípios.

 

[1] A Primeira Revolução Industrial, ocorrida a partir do final do século XVIII e ao longo do século XIX, foi movida a carvão, o que possibilitou o uso da máquina a vapor; a Segunda, que ocorreu durante a primeira metade do século XX, foi devido ao óleo que movia os motores de combustão interna e a Terceira, do final do século XX até hoje, que trouxe o surgimento da eletrónica alimenta-se além do petróleo, do gás e de forma ainda incipiente pelas energias renováveis
[2] https://www.iea.org/reports/world-energy-outlook-2021 (último acesso: 22 de março 2022, 15:00 TMG
[3] https://www.eucityfacility.eu/home.html (último acesso: 14 de outubro 2020 22.00 TMG)
[4] BOARDMAN, Brenda “Fuel Poverty” – Oxford University, 1991: a pobreza energética define-se como “a incapacidade de uma família de pagar uma quantidade suficiente de serviços de energia para satisfazer as respetivas necessidades domésticas, e/ou quando é forçada a alocar uma parte excessiva dos rendimentos familiares para conseguir pagar a conta da energia utilizada na residência familiar”
[5] Só para citar algumas iniciativas conhecidas: a cidade de Stuttgart (Alemanha) lançou um serviço de aconselhamento ao cidadão sobre energia e fornece uma série de vouchers para a compra de equipamentos de alta eficiência. Em Bristol (Reino Unido) por exemplo, ações para combater a pobreza energética foram priorizadas, através da criação de um roteiro para promover a eficiência energética. Cidades espanholas, como: Vitoria-Gasteiz (Bilbau) ou Alpedrete (comunidade de Madrid), financiam estudos sobre energias renováveis locais para traçar planos de redução de emissões e autossuficiência energética com recurso a energia fotovoltaica
[6] Ver: alínea j) do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 162/2019, de 25 de outubro, que prova o regime jurídico aplicável ao autoconsumo de energia renovável, transpondo parcialmente a Diretiva 2018/2001